“Brechas nos costumes”

Esse texto está no capítulo III do livro “A Igreja dos apóstolos e dos mártires“, o primeiro dos 10 volumes da coleção “História da Igreja“, de Daniel-Rops.

Os grifos são meus, com a intenção de mostrar a semelhança entre a situação que vivemos hoje e a de Roma às vésperas de sua decadência. É óbvio que os motivos são diferentes, mas os sintomas são muito semelhantes.

E a dica de São Jerônimo continua valendo: “São os nossos vícios que tornam os bárbaros tão fortes”. E basta olhar o mundo para ver os “bárbaros”. Se continuarmos nesse passo, eles virão, não tenham dúvida…


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Ao verificarmos, porém, que o conflito entre Roma e a Cruz era inevitável, e ao considerarmos o resultado bastante desconcertante que adveio de tal conflito — isto é, o triunfo do cristianismo —, somos levados a perguntar-nos se não haveria já, na própria estrutura da majestosa sociedade imperial, certas brechas que iriam permitir a infiltração da nova doutrina na sua massa, e provocar ou, em todo o caso, apoiar um processo de dissociação.

Essas brechas existiam, com efeito, e apesar de serem pouco visíveis aos olhos da maioria dos contemporâneos, são perfeitamente discerníveis para a história. E evidente que não se tratava de decadência, e seria falsear inteiramente as perspectivas aplicar esse termo à época do Alto Império; mas não há dúvida de que as causas profundas que mais tarde — a partir do século III — hão de arrastar Roma cada vez mais rapidamente para o abismo, se observam desde os tempos da idade de ouro. Até o ano 192, não se pode falar ainda em declínio, mas “a crise já está no homem”.

Esta crise, cujos sintomas se irão perfilando e cujos efeitos irão aumentando até a trágica derrocada do século IV, está ligada às próprias condições em que se ergueu essa obra obra-prima que foi o Império nos seus primeiros tempos. Roma conquistou o mundo; mas o que era Roma? Nos seus começos, um pequeno burgo itálico, o mercado onde se reuniam honestas famílias camponesas, o modesto centro administrativo onde vinham discutir os seus interesses uns homens rudes e simples, presos à rabiça do arado ou ao punho da espada, mas pouco preparados para enfrentar grandes tarefas civilizadoras.

Muito em breve havia de tornar-se enorme a desproporção entre este pequeno núcleo de governantes e a gigantesca massa dos governados, e daí resultou um perigoso desequilíbrio. Um desequilíbrio tanto mais grave quanto, entre os povos vencidos, muitos tinham uma concepção mais rica do mundo e uma civilização mais evoluída do que o dominador. O Oriente exerceu, pois, sobre os romanos uma verdadeira fascinação, e eles se submeteram à sua escola. Tal é o sentido profundo das célebres palavras de Horácio: “A Grécia conquistada conquistou o seu terrível vencedor”. Arte grega, pensamento grego, religiões orientais, costumes da Ásia — é uma torrente ininterrupta que, partindo do Oriente, vem desaguar na Itália, carregando consigo o melhor e o pior.

A conquista arrastou, pois, a sociedade romana para uma espécie de atoleiro espiritual. Aquilo que constitui o fundo de uma civilização, as suas profundas razões de viver, o conceito que ela tem de si mesma, o seu centro nervoso — eis o que Roma encontra cada vez menos nas suas próprias fidelidades. A medida que se refinam e se civilizara, os romanos afastam-se cada vez mais da antiga imagem da sua raça, que consideram grosseira e atrasada. A inteligência vem da Grécia. A bela ideia humanista do universalismo romano é uma herança recebida dos filósofos helênicos e dos geniais desígnios de Alexandre. A língua das pessoas cultas é a de Homero e de Aristóteles. Podemos fazer uma ideia do que era esse atoleiro espiritual se imaginarmos o que seria uma França que adotasse o árabe como língua das elites e definisse o seu papel segundo os preceitos do Corão.

No começo do Império, a vitalidade nacional é ainda suficiente para que qualquer contributo vindo de fora não esterilize as possibilidades latinas e para que, pelo contrário, a planta romana, enxertada no tronco grego, produza frutos maravilhosos. Quanto mais se avança no sentido universalista, porém, quanto mais se intensifica o intercâmbio entre todas as províncias do Império, mais a consciência romana é afogada pelo Oriente. Politicamente, o Império tornar-se-á campo de disputa das dinastias asiáticas, antes de o ser dos bárbaros; espiritualmente, estará pronto para aceitar uma outra concepção do mundo, já que a sua desmoronou.

Este fenômeno fez sentir as suas consequências em todos os planos e particularmente no plano moral. Ao conquistar o mundo, Roma viu que lhe começavam a faltar aquelas forças vivas que lhe tinham permitido a conquista. Mas podia ela ter procedido de outra maneira? não. Eis um exemplo marcante desses insolúveis dilemas em que o destino coloca o homem, sem dúvida para lhe dar a conhecer os seus limites. Para que a consciência latina se conservasse intacta e indomável, teria sido necessário que o romano continuasse a ser aquele homem rude, honesto e fiel que era na origem; mas então teria sido incapaz de governar o seu imenso domínio e, a partir do momento em que quisesse abandonar o plano da força, as suas energias vitais teriam decaído. De século para século, de 100 a.C. a 400 d.C., a sociedade romana dá-nos uma crescente impressão de esgotamento. Os seus costumes ir-se-ão corrompendo, assim como se irão dissolvendo a sua arte e o seu pensamento1. E não é este o único exemplo que a história nos oferece da íntima relação que existe entre o refinamento dos ideais de civilização e a desagregação das virtudes originais. Para que, nesta sociedade, se reconciliassem a força e a moral, o heroico e o humano, era necessário que houvesse uma reviravolta total, precisamente aquela que o Evangelho traria consigo.

Tal é o verdadeiro sentido desta “crise moral” que durante muito tempo esteve na moda pintar com as cores mais negras e que importa caracterizar mais razoavelmente. Não foi no mundo gangrenado do Baixo Império que se semeou a semente evangélica, mas numa sociedade ainda muito firme nas suas bases e que, apesar de fendida num ou noutro lugar, não se sentia abalada. Seria também absurdo julgar os costumes romanos pelas críticas acerbas de Juvenal, de Luciano e de Suetônio, ou pelas descrições de Petrônio ou de Apuleio, como o seria apreciar toda a França do século XX pelas comédias satíricas de Bourdet ou de Pagnol, ou pelos romances mundanos de Marcel Proust. A desmoralização à maneira do Asno de Ouro ou do Satiricon não atinge senão certos elementos das classes ricas, sobretudo nas grandes cidades. Uma casta luxuosa e corrompida pode oferecer modelos pitorescos a escritores talentosos, sem que por isso seja representativa da sua época.

Quando se põem de parte os textos literários em que só se retratam os poderosos, e nos debruçamos sobre documentos mais modestos, tais como epitáfios, graffiti e papiros, a vida privada romana do Alto Império oferece muitos exemplos de virtudes sólidas. O amor conjugal, a ternura para com os desamparados, a piedade filial, a afeição fraterna, são sentimentos que vemos louvar em frases comoventes. “Ela fiou a lá e guardou a casa”. “Foi boa e formosa, bela, piedosa, recatada, sóbria e casta. Foi compassiva para com todos”—. Assim rezam algumas inscrições tumulares redigidas por maridos agradecidos. Dois esposos quiseram dormir o último sono lado a lado, debaixo deste epitáfio comovedor: “Tínhamos um só coração”. Mesmo na alta aristocracia, e até em volta do trono imperial, vêem imagens admiráveis, que continuarão a resplandecer em plena decadência: esposas heroicas e ternas, filhos respeitosos, almas fiéis, para quem os preceitos da moral não são uma palavra vã.

Mas numa sociedade podem muito bem coexistir elementos perfeitamente sãos e fermentos ativos de desagregação: temos diante dos olhos um exemplo desta natureza. Em Roma, nos primeiros séculos, apesar das virtudes praticadas por muitas pessoas sãs, os sintomas denotam a existência de perigos graves que nada poderá evitar, porque resultam dos vícios estruturais do Império, daquilo que o torna rico e poderoso.

As conquistas fizeram afluir a Roma ouro e escravos. Os despojos de guerra recolhidos no Oriente pelos generais alcançam cifras vertiginosas; o saque ordenado por Pompeu teria rendido setecentos e oitenta e seis milhões de sestércios2, e a ele seguiram-se muitos outros, acabando Roma por ficar inundada de ouro. Os tributos arrecadados nas províncias do Oriente atingiam anualmente cerca de trezentos milhões de sestércios. De todo este maná, o povo recebia uma parte mínima, sob a forma de presentes aos soldados e de distribuições feitas à plebe; as classes dirigentes ficavam com a parte do leão. E numa época em que, por falta de grandes indústrias, eram muito reduzidas as oportunidades de investimento, o ouro servia apenas para que a plebe se entregasse à doce vida e para que os ricos o esbanjassem em vivendas, alimentos e prazeres. É assim que o metal amarelo, tão perigoso quando não é fruto do trabalho, irá desagregar a sociedade romana.

No Império Romano, há ainda uma outra fartura que vem juntar as suas desastrosas consequências is do ouro: a dos escravos. Durante os dois últimos séculos da República, as guerras puseram nas mãos dos vencedores centenas de milhares de escravos. Não era raro que uma só campanha militar arrebanhasse cento e cinquenta mil de uma só vez, e assim continuará, enquanto durarem as guerras imperiais. É necessário ainda ter em conta a pirataria, o frutuoso negócio do tráfico humano e a reprodução normal dos escravos já transplantados, para podermos fazer uma ideia da imensidão da massa servil e das incríveis proporções que ela atingia na sociedade. Em Roma, no tempo de Augusto, mais de um terço da população era constituída por escravos, e em Alexandria chegava provavelmente a dois terços. Como a quantidade diminui o preso da mercadoria um escravo corrente valia cerca de cento e cinquenta francos-ouro, e um especializado quinhentos a dois mil —, qualquer pessoa, proprietário, empreiteiro ou artífice que tivesse necessidade de mão-de-obra, preferia lançar mão dos escravos a recorrer a um homem livre. Era mais uma causa de desagregação da sociedade.

Estabelece-se nas grandes cidades, e sobretudo em Roma, uma massa popular mais ou menos ociosa, formada por camponeses desenraizados, trabalhadores autônomos agora privados de trabalho, escravos libertos e estrangeiros cosmopolitas: um terreno excelente para todas as doenças políticas e para todas as forças de desmoralização. O antigo romano, tão sólido no seu trabalho, torna-se o “cliente”, o parasita, a quem a “espórtula” remunera uma fidelidade suspeita. Os imperadores têm de contar com esta plebe lamentável e por isso a rodeiam de atenções. Mas um povo não se habitua à mendicidade e à preguiça sem que a sua alma seja atingida. Em breve a covardia e a crueldade andarão de mãos dadas com o vício, e o vício, como diz a sabedoria popular, é a mãe de todos os males. Já não há quem queira combater nas fronteiras, como não há quem queira trabalhar a terra. E assim aquela imensa multidão, para se distrair, irá procurar nos jogos do circo os prazeres que acabam por degradar a sensibilidade humana.

Mas há algo pior ainda do que esse deslizar da sociedade para a inércia mortal; ou, melhor, há ainda outro fenômeno que anda a par deste, proveniente das mesmas causas e sobretudo do enriquecimento excessivo. A sociedade romana foi atingida na fonte viva que alimenta toda a sociedade: a família está abalada e a natalidade decresce. A mãe dos Gracos tivera doze filhos, mas nos começos do século II serão louvados como uma exceção os pais que tenham três. Evita-se o casamento; porventura a orbitas, o celibato, não traz ao rico todas as vantagens, assegurando-lhe uma fiel clientela de herdeiros expectantes? E de que poderá o celibato privar o homem, se a escravidão lhe proporciona companheiras mais dóceis que as esposas e que se podem renovar à vontade? O aborto e o abandono de crianças assumem proporções espantosas. Uma inscrição do tempo de Trajano dá-nos a conhecer que, de cento e oitenta e um recém-nascidos, cento e setenta e nove são legítimos, e destes, apenas trinta e cinco são meninas, o que prova suficientemente a facilidade com que as pessoas se desembaraçavam das meninas e dos filhos naturais. Quanto ao divórcio, tornou-se tão corrente que já não lhe procuravam sequer qualquer aparência de justificação: bastava o simples desejo de mudança.

Que se poderia opor a estas forças de desagregação? Os Estados têm mostrado sempre incapazes de recolocar a moral nas suas verdadeiras bases, depois de a terem deixado definhar. Os dirigentes romanos não estão inteiramente inconscientes do perigo, mas a sua boa vontade mostra-se irrisória perante o conjunto de circunstâncias que arrastam a sua sociedade para a ruína. O exemplo de Augusto é revelador. Multiplicou as leis de intenção altamente moralizadora com o fim de combater o adultério e o divórcio. Quem as tomou a sério? Nem mesmo os da sua família. Aliás, não tinha sido ele que oficializara a preguiça, fundando a prefeitura da Bolsa Família Anona3, encarregada de alimentar gratuitamente o povo? Periodicamente, veremos os imperadores subsequentes reeditarem essas primeiras medidas, o que prova que foram totalmente ineficazes. Os costumes dissolutos de tantos dos seus senhores, a resignação mais ou menos altaneira com que um Cláudio ou um Marco Aurélio suportam as suas desgraças conjugais, esclarecem a plebe sobre o verdadeiro alcance das medidas legislativas. Nos começos do século III, ao tomar posse do Consulado, Dion Cássio há de encontrar, só em Roma, três mil casos de adultério inscritos no respectivo registro. Pode-se dizer que ainda existe crime, quando ele é universal ou quase universal?

Em todos os tempos e em todos os países, a substituição das tendências naturais do homem pela vontade do Estado é sempre um indício de decadência. Um povo está muito doente quando, para viver honestamente e ter filhos, necessita de prêmios ou de regulamentos. “Chegamos a um ponto — dizia já Tito Lívio — em que já não podemos suportar nem os nossos vícios nem os remédios que os poderiam curar”. Quatro séculos mais tarde, São Jerônimo escreverá: “São os nossos vícios que tornam os bárbaros tão fortes”. Já não estava nas mãos do imperador ou dos seus juristas restituirá sociedade romana as suas sadias raízes. Tornava-se necessária nada menos que uma mudança radical nos próprios fundamentos da moral e nos seus meios de ação sobre a consciência.


(1) A diminuição da força criativa é, com efeito, um sintoma muito marcante da esterilização progressiva da sociedade romana. Nem a arte nem a literatura conseguem manter-se sãs numa civilização cuja saúde está abalada. Desde a época de Augusto, pressente-se o declínio. As obras-primas romanas, nascidas da semeadura grega feita em terreno latino, duram pouco tempo. Segue-se a época das cópias, do crescente academicismo. Grandiosa em muitos casos, mas pouco original, a arte imperial vive no inicio à sombra dos últimos tempos da República, e depois cai no pomposo, no grandiloquente e, em breve, no mau gosto. A literatura mais espalhada no primeiro século não é a de Virgílio ou de Tácito, mas a dos fabricantes de súmulas e de florilégios: um Higino, um Valério Máximo, o Sêneca das Questões naturais ou o Plínio, o Velho, da História Natural. No século II, o sucesso irá para os neo-sofistas, para os gramáticos, para os lexígrafos, para as compilações científicas de Ptolomeu e de Nicômaco, para obras que, em si, estão longe de carecer de mérito, mas a que falta o espírito criador. Também neste domínio será imenso o papel do cristianismo: tanto as artes como as letras serão renovadas pelo Evangelho.

(2) O sestércio foi durante muitos séculos a moeda básica do Império Romano. Equivalia a um quarto de um denário, que por sua vez correspondia à paga diária de um operário não especializado.

(3) O hábito de o Estado distribuir alimentos irá estendendo-se cada vez mais. No século III, para uma população de 1.200.000 pessoas, calcula-se que não haveria menos de 100.000 chefes de família que não se valessem da Anona.

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